a história
estou faminta, venha de lá essa garrafa dorna do douro, confesso que também tenho sede.
o que sinto? sinto uma vontade cada vez maior de me perder no olhar das coisas, no lugar desta obstinação que me suspende a vida.
hoje não me sinto bem
sinto-me como aquela bandeira da olá, esfarrapada, suspensa por um fio tenaz, hasteada no mastro do café dos piratas junto ao mar, sujeita aos arrufos do vento
sinto que a qualquer momento se vai interromper a corrente do golfo, e o gelo vai tornar-se mais pesado do que a água, fazendo jus à densidade, e a lua, a lua vai voltar-nos a outra face
sinto que já não há campanhas passíveis de contrariar o que nos gela as veias
qual sistema de calunia, entorpecimento ou perfídia
marés negras
acabam-se as lajes de mármore, cimentem-se os corpos
emparedem as ideias
migram as andorinhas do bordalo pinheiro
de volta à pequena escrita
o círculo estreita-se cá na ilha
não encontro jeito de falar-te sem que me sequem as palavras
esvazio-me de verbo mal tacteio a tua ausência do lado de mim
de maneira que o sono me encontra mansa como a água numa garrafa de 33 cl que perdeu o gás e deixa um travo a bafio findo o primeiro gole. olho a capa do livro do T. e tento adivinhar a idade daquele amor voltado e procuro convencer-me que não são tu e ela quando na verdade já tudo aconteceu. aqui desta pequena escrita, ilha que me tem tão restrita, olho vagamente pela janela e desfilam, difusas, pequenas imagens passadas que mais não foram do que adereços de uma atenção menor e que agora,
quando nelas procuro abrigo, me escapam, se fecham, voltam-se de costas tal como os vultos na fotografia
um livro que não cheguei a ler
e sorvo um golo de cerveja preta, sabes que enjoei as brancas, não sabes?
Já não ouvia amy há quase um mês, mas hoje volto irremediavelmente ao negro pois nele me alastro, tal como a tinta no mata-borrão.
o mau tempo por cá avança sobre os pequenos estragos, mas todos os dias sigo dirigindo-me ao pontão onde se rasga o mar para ver se te encontro reflectido sobre a talha dourada erguida em prece à santinha. raios! porque é que não tirei o raio da fotografia naquela altura, agora cruzo-me apenas com uma parede vazia que insiste em gritar-me: nada aconteceu! e as notícias avançam a impraticabilidade, vai para meses que não atraca navio neste cais, e eu capaz e apostada que nos tínhamos sorrido ali minutos antes, naquela esquina estreita e branca, contrariando o vento frio que nos fendia as orelhas, e espreito o tecto recortado,
que retalho será aprumado pela mão da nossa parca esmola, que pincelada e quando?
mas parece que o senhor que guarda as portas do altar se finou faz agora uns anos e as velinhas que ali resistem estão ligadas à corrente e tremeluzem ao ritmo do vento
acordei de manhã com o despertador do telemóvel sem saldo e quase sem bateria, mas que, apesar de tudo, não me deixa ficar mal,
é uma linha que entretenho com o exterior e toda essa pressa, essa mesma pressa que me prende à cama estreita, embala as noites vizinhas, e conspira com um chão de madeira e um latejar de gotas da sanita, ao som roufenho do galo, esse incessante galo
e pensei, não há pressa, embora um dos lagartos, roubado a um tanque artificial numa terriola no fim do mundo atrás do último monte, tenha já perecido, força da estranheza do aquário que lhe serviu de guarida na reserva do tempo
pensei, não há pressa e vou fazer aquele filme, e pegar em cada uma daquelas extremosas flores que entretanto cabecearam e sucumbiram sob o seu próprio peso, fazendo hoje um húmus que desafia toda a pressa
pensei também num daqueles percursos que se faz até casa, em que nos desviamos das nuvens para não chocarmos nas formas que nos distraem da rota, da chuva miudinha que derruba a aspereza do vidro, enquanto o limpa vidros, roído pela usura, forma neblinas que nos impedem de destacar as distâncias que se encurtam entre as viaturas, e entre tudo isto, descubro que a pressa é quase uma promessa de sentido, sentido único, inviolável, como a história que fica por jorrar mas que vai jorrando
e entretanto, nesse curto entretanto, a pressa queda miúda, como a chuva e como o cão que encontrou novo abrigo e se saciou de vontades primárias, chibatando a sorte com uma perícia que só aos bichos é concedida
e entretanto há uma falésia linda, e rochas vincadas pelo tempo e um mar que borbulha e andorinhas que circulam acabadas de chegar de outras pressas e não parecem fazer caso daquele casal lá no fundo num canto da praia, enroscado contra o tempo, de mãos dadas e olhos postos no infinito do outro, sem dar conta do mar que se arremessa e reclama toda e qualquer pressa
e juntam-se umas gajas ternas e tenras que brindam ao tempo presente, e a pressa funda
essa pequena pressa, como um grão de areia no sapato
Sentou-se à janela do sol poente
e adormeceu
acordou com o ronronar da gata a fazer ninho no seu colo
ou pensou acordar assim quando afinal acordou num quarto de dormir numa cidade desconhecida
deu um salto, esticou o pescoço procurando rapidamente uma luz de presença, algo que pontuasse a sua presença ali
e deparou com um vulto a dormir do seu lado
sentou-se na cama e procurou-se na sombra
tornou a acostar-se confusa
um pé encontrou o seu
e devolveu-lhe a tranquilidade, sentiu-se em casa
numa cidade desconhecida