20061118

poischiche


é ela

20061113

tecendo a composição

decidi escrever-te quando estás ausente. decidi que irás ouvir-me e que mudarás... todos precisamos de um ouvinte confesso confessor das nossas agonias terapeuta dos nossos desvarios todos precisamos de outro para sentir que somos e a minha angústia ganha forma em ti, em ti derramo as minhas tristezas para que não me toquem gosto de ouvir-te és a água que corre e o vento que se enrosca levemente no meu cabelo em desalinho em ti derramo as minhas tristezas e fico livre pronta para ser tomada pelo pasmo que então o mundo causa devo concentrar-me para contar-te esta história e tu deves conduzir-me pelo mar até esse país desconhecido que esconde todos os segredos enrosco-me nos teus dedos longos e sonho com êxtase redobrado sinto desvelar-se a pele e arrepiar-se o desatino
nada me pode escapar, devo envolver-me no sonho para não atrapalhar a realidade devo pensar dar forma ao compromisso devolver conteúdo ao esquisso

20061109

carambola

a menina do olho negro acordou, e mal o ouvido despertou, carambola, gritou.
fui ver correndo que descortesia teria afligido a minha lucinda, mas lucinda sossegava, escovava o cabelo, cantava. lucinda, sussurrei mansinho para não quebrar encanto, ela voltou-se para mim e sorriu, penteia-me disse, e eu ergui a escova e escovei-a com jeitinho, para que nenhum fio se quebrasse

20061107

em maio passado

25 de Maio de 2005
quando acordei de manhã tinha sonhado com um gato e com o médico do dente comprido. tropecei
tropecei, sacudi o pêlo, revesti a pele de mil lubrificantes, reverti o zelo, parei junto do relógio da cozinha, encolhi-me, abri a porta que range do frigorífico, percorri com os olhos as estantes abundantes de cor, escolhi o iogurte verde, peguei numa maça vermelha, vesti-me de negro, pintalgada de flores.
perdi uma das flores dos sapatos novos, almocei, escrevi cem mensagens, entrevi mil anúncios, urdi dez mil planos.

já dormi, já acordei, já corri, já subi escadarias, já enterneci, já cumprimentei, já me ri.

26 de Maio
amanhece em alegres chilreios, o sol raia forte e atravessa as portadas, desenha sombras voluptuosas e inaugura enredos, os olhos afeiçoam-se devagar à luz e rejeitam o escuro que deixam de reconhecer.
como um clique, como um clique virá a gravidez, virá a solidão de um dia doente, virá um sopro ardente e serei um coração mecânico.
a praia encheu-se de carnes que aguardam a maturação, derretem-se as últimas banhas, ganham-se as últimas corridas, enverga-se o último grito e pende-se acessório. este ano tudo é acessório, não ouviram dizer? Aproximamo-nos rapidamente do verão, atravessamos o ano com um apanágio débil, circulamos sem fardo, mas fardo.




atestado 1

sabes,
acordei cedo, com o gosto de nuvens na boca. estava já completamente lúcida quando faltei ao trabalho para ir vivê-las ao mar. mas, chegada, não as encontrei como as senti na boca e decidi continuar em direcção uterina. (sabes que o meu medo em olhar o chão levou-me a esta obsessão permanente em prever a rara aparição da nuvem pileus no topo dos cúmulos, a nortear-me pelo início dos cirros, a perder-me se o céu não se deixa partilhar nem com os rastos de aviões gelados.) Não foi necessário caminhar muito mais, as nuvens faziam a foz do rio como o mar faz a foz ao rio. não sei se me compreendes. não quero parecer po(t)ética, quero ser o mais lógica possível. usam-se as palavras adequadas para descrições e descreve-se, é fácil. então as nuvens. carbonizadas, densas, nítidas, perfeitamente finitas vindas do rio, elas mais negras, ele mercurizadamente branco, iluminado pelo céu que existe para além delas.
este sabor era o de um poderoso cumulonimbo. a luz era a das coisas do chão, reflectoras de tudo o que há por cima. e, sob o mar, um arrependimento de estrato com o silêncio do céu a permitir a beleza das nuvens.
se o rio trazia a tempestade eu iria pela tempestade e mergulharia nela até à calmia do mar. são assim os desportos radicais, foi-me dito.
choveu e eu fui.
portanto, se vires o meu trabalho, diz-lhe que não tenho pena nenhuma mas não quis ir e que só irei se for verão.

20061106

amanhã vou ao jardim da estrela

amanhã vou ao jardim da estrela. levo comigo um sanduíche e vou repousar sob as folhas de inverno. levo também um livro que muito possivelmente não abrirei. mas amanhã estarei contigo.
o dia está cinzento, ergo-me e gravito já, encontramo-nos lá
são uns tiranos não compreendem este sono não compreendem a tontura que me embala de manhã e que me cala à noite

não posso continuar fingindo ouço não posso continuar fingindo sonho não posso continuar recuso não posso continuar abuso servirás um dia para cobrir-me, quando decidir não mais erguer-me, resistindo à ansiedade turva do meu corpo, desobedecendo às curvas do teu cabelo e ao apoio da mão sob o cotovelo
terei desligado o candeeiro e interrompido o marulhar das ondas terei sofrido mil terrores sem que nenhum se tenha perpetuado em mim terei ouvido louvores e acusações como se fossem um renunciar

renunciarei porque já não quero porque terei vencido o último medo e sem ele não poderia amar-te

encontro de sonâmbulas num café de esquina

o cansaço era imenso, e tropecei no peso do meu passo antes mesmo de me acercar da porta. nos meus olhos deteve-se algum embaraço, mas era demasiado longo o traço e o choro não rompeu. conversamos as duas, aprazivelmente ausentes, e num estrebuchar de frases sem sentido tornamo-nos menos dormentes.
sorvemos o café, era amargo, pusemo-nos de pé, era longe, assentamos num beijo sem credo e voltamo-nos sem medo.

e assim começamos a conversa

este blog é para elas nela.